28 de agosto de 2003

Primo

Tenho um primo que é bailarino.
Eu soube disso a pouco tempo porque tenho uma ligação tênue com minha família. É um fio diáfano que só não se rompe porque minha mãe é dedicada e segura firme a ponta de cá.
O primo, Nelsinho, é talentoso. Disse minha prima, mãe dele. É muito talentoso. Disse o resquício de família.
A última vez que nos vimos eu tinha uns treze anos, eu acho. Mas as notícias de ambos os lados não se diluíram entre os parentes. Crescemos, mudamos, amamos e choramos em vidas separadas e ficamos sem as notícias. É uma parentada "discreta", ao nosso modo. Tristes, sob um olhar mais atento.
O fato importante é que Nelsinho foi chamado as pressas para integrar um ballet alemão, substituindo o primeiro bailarino da companhia.
Recebi essa notícia na semana passada de uma outra prima mais próxima. Eu estava a caminho da academia com o sorriso do gato de Alice estampado na cara. Não sei porque Sheila me passou essa informação assim do nada; no meio da rua; com seus filhotinhos lindos voltando da escola. Não entendi. Não lembro se houve alguma palavra que fizesse conexão ao fato. Ela simplesmente disse na lata.
Tudo bem. A notícia foi ótima. Suspirei de orgulho. O vôo dele era naquela noite de sexta. Para Berlim com escala em Paris. Que lindo.
Trinta minutos depois, na esteira, correndo a 7km/h, senti algo estranho. Um embaraço. Tenho medo de confessar. Vergonha de acreditar. Parei.
Onde foi que nos perdemos? Será que se lembra de mim com algum carinho? Será que ainda temos os números de telefone um do outro? Nos perdemos.
Quem é esse Nelsinho novo que emergiu do simplismo que emana em nossa família?
Ele agora é o Nelson.
E eu, um estranho que mora no mundo da realidade básica, pincelada com fru-frus e melancolias virtuais.
Eu tô na festa certa? Que dança é essa? Não me deram um parceiro hábil!
Fiquei com uma pitada de ... inveja.
Sim, inveja. Essa é a verdade cruel.
Eu não sou um santo em tempo integral! Tenho direito de exclamar a minha vilania inofensiva sim!!! Qualé?!!
Eu gostaria de saber onde foi que ele acertou? Alguém pode me dizer?!
Quem deu essa idéia de ser bailarino talentoso a ele? Expliquem-me!!! Como ele conseguiu ficar tão alto, bonito, musculoso e ganhar uma baba em euros? Cadê o Nelsinho magrelo, irritante e chorão?
Eu quero o meu primo dos anos oitenta de volta. Para que eu possa me sentir melhor.
Do que adiantou os anos de teatro, as tentativas no jazz, os textos clássicos, a vasta cultura televisiva e fútil e os filmes do Bergman, se quem ganha o prêmio é ele?
Eu sei o que vão dizer: - You're not good and real; You're evil and imaginary!
E daí?
Pronto, falei!
E que venha a tempestade.

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